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Entrevista com Julio Américo, fundador da Liga Canábica: “Somos mais um movimento social do que uma associação de pacientes”

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Julio Americo Pinto Neto, pai de Pedro - que usa óleo de maconha há 6 anos para o tratamento de epilepsia refratária e transtorno do espectro autista - também é psicólogo, técnico administrativo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), fundador da Liga Canábica e militante pela defesa do direito à saúde e à universalidade do acesso ao uso terapêutico da maconha. Na foto ao lado, Julio e Pedro.

 

 

História da Liga:

Em 2013, Julio conheceu a história de Charlotte Figi, uma criança estadunidense que usava o óleo de maconha (​Cannabis sativa sp.​) para o controle das inúmeras crises convulsivas causadas pela Síndrome de Dravet, condição semelhante à de seu filho Pedro, com Síndrome de West à época. Julio e Sheila Geriz (mãe de Pedro, também fundadora e atual coordenadora geral da Liga Canábica) seguiam em busca de alternativas para controlar as quase 40 convulsões diárias de Pedro. Em 2014, durante uma viagem a São Paulo para tratamento com a dieta cetogênica, assistiram a uma matéria veiculada pelo Fantástico (Rede Globo), sobre o caso de Anny Fisher, uma criança com epilepsia grave, cujos pais estavam assumindo publicamente que traficavam o óleo de ​Cannabis em nome da melhora no quadro de saúde da filha. Para importar, era necessário um laudo médico, mas os médicos não o faziam sob pena de perder a o registro profissional.

“Começamos a perceber que a nossa demanda não era só uma demanda particular – do nosso filho ou do filho de um ou de outro. Nós éramos um segmento da sociedade ao qual estava sendo negado o direito à saúde. Conforme conhecíamos outras famílias com essa demanda, percebíamos que as condições sociais das pessoas não davam a elas a mesma oportunidade que teve o Norberto [Fisher, pai de Anny], por exemplo, de contratar um advogado particular. Foi aí que a gente começou a ter a noção de que a nossa luta tinha algo de coletivo, não era uma coisa particular. Procuramos o Ministério Público Federal daqui [da Paraíba] em 2014 e fomos – 15 famílias, 16 pacientes – a 1° ação civil pública contra a União e a ANVISA pelo direito de importar quando a gente quisesse sem precisar de autorização da Anvisa. E ganhamos!”

Esse foi o estopim para a politização e popularização dessa luta, através de atos públicos, passeatas e campanhas que foram realizadas tanto em praias urbanas de João Pessoa quanto em outros bairros da Capital, o que gerou grande repercussão na imprensa.

“Nessa época foi formado um grupo de Whatsapp chamado Turma do Bem, que juntava pais e mães de pacientes de alguns estados do Brasil e alguns militantes, na tentativa de criar um movimento nacional pelo acesso à Cannabis.”

Em Dezembro de 2014, Júlio, com um grupo da Paraíba, se associaram ao movimento nacional de pacientes e familiares de vários estados para fundar a AMA+ME, que foi a primeira associação de pacientes de ​Cannabis do Brasil, da qual Júlio foi o primeiro presidente. Já em setembro de 2015, Julio, Sheila e outros pacientes e familiares fundaram a Liga Canábica, primeira associação registrada com CNPJ no país. Segundo Julio, a Liga nasceu a partir da compreensão da importância de agir localmente e nas bases, com as famílias. ​“Era preciso atuar muito mais como movimento social do que como uma associação de pacientes”. Em 7 de maio foi realizado o show de lançamento da Liga Canábica em João Pessoa, evento que contou com diversos artistas da região que abriram mão de seus cachês para participar do lançamento público da Associação. Hoje essa data consta no calendário municipal de João Pessoa e no calendário estadual da Paraíba como o “Dia da Visibilidade da Cannabis Terapêutica”, sendo o único estado a ter essa data oficialmente marcada.

A Liga Canábica:

A organização da associação se dá de maneira não WhatsApp_Image_2020-06-19_at_18.36.12.jpeghierárquica. Existe uma coordenadoria geral e as decisões são tomadas de maneira colegiada. O financiamento é feito exclusivamente pela contribuição
voluntária dos associados, que varia de acordo com a possibilidade de cada associado ​“Tem estudante que contribui com R$10, tem outro que pode mais, contribui com R$100”. A​ forma de obtenção do óleo se dá através de cultivadores parceiros, dando-se preferência para cultivos orgânicos. A identidade do cultivador permanece em sigilo, exceto por uma pessoa, que é quem faz o intermédio entre o cultivador e o usuário. Esse trabalho é feito gratuitamente pela Liga, de modo que o óleo é repassado do cultivador para o beneficiário pelo mesmo valor, não tendo qualquer obtenção de lucro. ​“Nesse sentido, o sonho da associação é produzir um cultivo solidário e fazer com que várias pessoas consigam o habeas corpus para o cultivo doméstico e, a partir delas, quem sabe, montar uma cooperativa, além de pesquisar formas mais naturais e baratas de cultivo para aumentar o acesso”, r​essalta Júlio. A Liga Canábica tem hoje cerca de 140 associados, além de parceiros em todo o Brasil (na foto acima, Julio e Sheila Geriz).

 

 

Atualmente a associação atua principalmente nos seguintes eixos:

           (1)  Educação sobre maconha: popularização do debate, tornar essa planta conhecida, superar preconceitos, criar uma cultura de acolhimento e superação de estigmas em relação à maconha terapêutica e seus usuários;

          (2)  Incentivo à produção e difusão de conhecimento científico: parceria com universidades, institutos de pesquisa, colocar a sociedade para dentro da universidade para trocar experiências, propor estudos, participar do processo de elaboração das perguntas científicas, romper as barreiras entre o tradicional e o acadêmico, organização de eventos, tradução do conhecimento científico, para que não se use a linguagem como poder;

         (3)  Aproximação com o SUS: incentivo ao envolvimento amplo do SUS nos processos de acolhimento e cuidado de usuários e familiares (capacitação de profissionais de saúde), bem como no conhecimento do potencial terapêutico da maconha, das possibilidades de tratamento e prescrição (articulação com médicos de família e comunidade, da saúde mental e atenção básica), ao cultivo e distribuição (incentivo à inclusão da cannabis nas Farmácias Vivas e na Lei dos Fitoterápicos), à promoção de atividades conjuntas com as equipes de práticas integrativas (aromaterapia, acupuntura, heiki e outras) e à busca do reconhecimento dos usos tradicionais de maconha já existentes no Brasil;

        (4)  Atuação política: fomento a políticas públicas, intervenções e promoção de sessões especiais em Câmaras Municipais, na Assembleia Legislativa da Paraíba e nas escolas de ensino médio, busca de participação em conselhos, trabalho conjunto na elaboração de projetos de lei para pesquisa, educação e cultivo. Nacionalmente, articulação com parlamentares federais, trabalho conjunto junto aos projetos de lei em tramitação, esforço para a regulamentação e/ou descriminalização do cultivo doméstico e associativo. No âmbito do judiciário, articulação com Ministério Público Estadual, Federal e Defensoria Pública da União;

       (5) Acolhimento: orientar as pessoas que chegam, acolher e criar condições para que o acesso seja ampliado ao máximo possível, além de desenvolver a autonomia do usuário através do conhecimento e do debate. Fortalecer as relações comunitárias.

Julio considera fundamental que o associado não seja apenas um consumidor de maconha terapêutica, em óleo ou outras formas de uso, ou dos serviços prestados pela associação, mas que se possa estabelecer uma relação de parceria, numa convivência comunitária, de co-participação e corresponsabilização.

“Hoje eu posso dizer que a Liga transcende o movimento associativista, porque nós não somos só uma associação de pacientes, mas um movimento social que busca a articulação de pessoas, cidadãos e cidadãs, professores, pesquisadores, profissionais de saúde, comunicadores, operadores da justiça, militantes, pessoas de outros movimentos sociais, usuárias ou não, em defesa da cannabis terapêutica no Brasil”

A Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) oferecem projetos de pesquisa e extensão em maconha, uso terapêutico e educação em maconha, além de um grupo que está discutindo o uso em medicina veterinária. Para Julio, é urgente a necessidade de repensar a integralidade e a complexidade do sujeito, das nossas visões de mundo, sobretudo na formação da sociedade:

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“Não dá para compreender as possibilidades terapêuticas da maconha a partir de uma visão cartesiana. A dose, a planta, a enfermidade, o contexto, e o sujeito - seu temperamento, condições físicas e psicológicas - precisam ser levadas em consideração ao longo do cuidado. O tratamento com maconha exige de nós uma visão mais humanizada. A maconha nos humaniza [...] Hoje na Liga a gente percebe que a questão da maconha não é só a maconha. Pensar em políticas públicas para a maconha, pensar na relação da humanidade com a maconha, pensar nas possibilidades dessa planta é pensar também num modo de ser e de viver diferente, pensar na superação de preconceitos, quebrar paradigmas, repensar a relação médico-paciente, produzir uma relação de troca, menos hierárquica, voltar a valorizar os saberes tradicionais [...] O nosso foco maior na ampliação do debate é para que a gente pegue essa luta pelo acesso à maconha e contextualize. Ela não pode ser vista separada dessa grande luta que é o acesso à saúde, da luta dos outros coletivos que estão aí lutando por seus direitos. Como é que eu posso separar essa luta pelo acesso à cannabis da luta do povo negro, se o genocídio desse povo é intrínseco a atual lei de drogas na qual a maconha está? Como é que eu vou separar dos povos indígenas, que há muito tempo incorporou a maconha em seus rituais? Separar da luta das mulheres que hoje é a população carcerária que mais cresce no Brasil por conta da Lei de Drogas? Então não tem como a gente pensar num associativismo sem ter essa transcendência, sem entender o contexto em que estamos inseridos. Porque da proibição? O que tem por trás disso? Então é mais amplo, é preciso que a pessoa pegue essa discussão e leve para sua casa, seu bairro, seu trabalho, sua igreja, seus grupos de pertencimento.”

         

Principais avanços e desafios das associações hoje:

Julio faz questão de lembrar que existem registros de uso de cannabis pelo homem para os mais diversos fins há pelo menos 10 mil anos.

“Os povos tradicionais, os quilombolas e indígenas já se relacionavam com esta planta sem a necessidade de categorizar sua experiência com ela. Assim, o que importava era a relação da comunidade com essa planta, que ora se expressava numa experiência com a erva terapêutica, ora com a erva ritualística, ora com a erva celebrativa, sem que focasse na distinção de seus usos. A medicina moderna, e sobretudo a indústria farmacêutica, ao contrário, tende a privilegiar o uso a partir da ciência cartesiana que estigmatiza a planta e se detém a isolar substâncias, sintetizar outras e conferir exclusivamente ao médico o poder de tratar, estigmatizando o conhecimento ancestral e os saberes populares dos erveiros, rezadeiras, raizeiros, dentre outros, acusando-os de curandeirismo, charlatanismo, magia negra, descredibilizando esses saberes e deixando os usuários de maconha terapêutica à mercê desses profissionais e sem autonomia e direito de escolha de seus tratamentos. Desde o início da proibição no Brasil foi assim, e até hoje, ainda sofremos com essa lógica perversa. Essa realidade é bem utilizada pela indústria farmacêutica, como estratégia para conservar seus lucros exorbitantes e utilizar-se inclusive do dinheiro público do SUS para gerar ainda mais dividendos para seus acionistas.”

Nesse sentido, Julio lembra que atualmente diversas associações têm se unido na tentativa de consolidar uma Federação Nacional de Associações Canábicas e pontua que conhecer o perfil do associativismo canábico brasileiro será fundamental para ajudar na escolha dos rumos dessa organização. Sobre isso, Julio reforça a importância do Levantamento Nacional das Associações Canábicas do Brasil, que está sendo realizado pelo Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas e destaca:

“Essa é uma iniciativa muito importante para que a gente se conheça. Eu gostaria de perguntar às outras associações, por exemplo, sobre o cultivo, o que elas pensam? Deve ser orgânico ou não? Elas apoiam os sintéticos e [compostos] isolados ou preferem os fitoterápicos? Essas associações se organizam em estruturas mais hierarquizadas ou mais colaborativas, com conselhos deliberativos? Que tipo de regulamentação queremos? Que tipo de legalização? [...] Muito importante conhecermos a visão política de cada um, no que elas acreditam; entender o perfil do associativismo brasileiro para que isso nos auxilie a visualizar onde estamos, o que queremos, o que nos une e o que nos distingue. Acreditamos que isso seja de grande valia para a organização conjunta dessas associações num molde que beneficie, em primeira instância, a luta pelo direito amplo e irrestrito à saúde em seu conceito mais integral.”

Para responder o formulário do Levantamento Nacional das Associações Canábicas do Brasil, clique aqui.

 

Por Fernanda Soncini, Luciana Togni de Lima e Silva Surjus, Eliana Rodrigues, Luiza Coqueiro e Claudia Fegadolli, para o Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas da Universidade Federal de São Paulo. Junho/2020.

 


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